Ofensiva do capital contra os povos indígenas e camponeses
Atualmente a maior luta em que está envolvido é contra
a megausina de Belo Monte, no rio Xingu, paraíso
da bio e da sociodiversidade em plena Amazônia, agora
ameaçado por esse projeto dos tempos da ditadura
militar que foi atualizado e desengavetado pelo
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde os anos
80, Sevá publica estudos críticos ao projeto,
demonstrando suas falhas e inconsistências.
Na entrevista a seguir, Sevá mostra que o atual cenário de
conflitos socioambientais tem, na realidade, uma amplitude
global, representando um desafio para os movimentos sociais de
todo o mundo. E adverte: “A ameaça também é muito grave quando
os intelectuais e políticos considerados de esquerda rezam a
cartilha do capital, repetem os mantras ideológicos do
capitalismo, e usam o seu capital político e cultural para
amainar as criticas e flexibilizar os que pensam de modo
autônomo, para isolar aqueles que simplesmente continuam
resistindo à expropriação”.
Desinformémonos – É possível perceber na atualidade uma
ofensiva de alcance latino-americano desses projetos de
exploração de recursos naturais em terras comunitárias
(camponesas/ indígenas) ?
Oswaldo Sevá – Sim, é uma ofensiva com grande preferência pelas
Américas Central e do Sul, mas que também assola várias regiões
da África, da Ásia e da Oceania. Mas é uma ofensiva global, pois
envolve agentes econômicos e políticos de muitos países, agentes
que raciocinam e decidem com o “mapa mundi” aberto numa grande
mesa ou numa grande tela digital. É uma ofensiva capitalista, e
não podemos omitir nem esquecer esse nome, porque se trata de
tentar superar mais uma das grandes crises estruturais do
sistema capitalista. No caso, dizem os estudiosos como Harvey e
Arrighi, é uma crise de super-acumulação, uma crise financeira,
uma demonstração exuberante da famosa lei da “queda tendencial
das taxas de lucro”.
Por isso, os alvos preferenciais da ofensiva são as
localidades e regiões com recursos naturais considerados
estratégicos. E aí se criam projetos de investimentos
considerados capazes de gerar taxas de retorno altas – o que
obviamente depende de custos econômicos e de custos sociais, e
depende da possibilidade de concretizar, novamente o “velho”
mecanismo da acumulação primitiva, que nunca deixou de atuar.
Os grandes oligopólios que controlam a eletricidade e os
equipamentos elétricos, os minérios e a metalurgia, o
agronegócio, o petróleo e o gás, a celulose e papel, estão há
algumas décadas estudando minuciosamente as possibilidades de
novas fontes desses materiais e energias e esquadrinhando com
métodos sofisticados os novos territórios onde produzir tais
mercadorias. Anunciam investimentos similares ao mesmo tempo em
todos os lugares, por exemplo, hidrelétricas para barrar todos
os rios ainda barráveis em muitos países, incluindo até mesmo
alguns dos países mais antigos e mais ricos, como os europeus.
Por exemplo, anunciam a abertura de novas minas de ferro,
manganês, ou de níquel, cobre, zinco, cromo, mas principalmente
minas de ouro, prata, platina e metais mais raros como o nióbio,
em várias regiões do mundo ao mesmo tempo.
O primeiro passo para conseguir concretizar cada um desses
investimentos – ao contrário do que muitos argumentam, não é o
financiamento, pois de algum modo sobra capacidade de investir
no sistema global – é a conquista dos territórios. Que em geral,
já tem ocupantes, donos e usuários anteriores, em alguns casos,
muito antigos, grupos humanos secularmente estabelecidos. Suas
terras devem ser agora “liberadas” para barragens, novas minas,
ou grandes plantios de eucaliptos ou palmeiras ou soja, e
estradas e ferrovias que os conectem ao mercado mundial. Aí, os
moradores e os vizinhos desses locais escolhidos pelo grande
capital devem ser expropriados e transformados em proletários,
uma parte deles em assalariados, que somente conseguirão
sobreviver no mercado e para o mercado. Essa é a ofensiva.
Desinformémonos – Como classifica o grau dessa ameaça?
Sevá – É muito grave, pois o sistema capitalista sob ameaça
retoma suas origens autoritárias, as empresas gastam cada vez
mais com a segurança do patrimônio, dos executivos e dos homens
de campo, empregam cada vez mais intermediários da coação sobre
os povos, informantes que na prática fazem contra-informação,
rastreando os movimentos legítimos e libertários, a agem por
meio de capangas para rastrear e intimidar esses dissidentes e
resistentes. O capital se apossa ainda mais dos postos de
governo nas três esferas – executiva, legislativa e
principalmente no Judiciário.
Enquanto aumentar o poderio das grandes empresas, as duras
conquistas democráticas serão corroídas e derrubadas, restando
para a sociedade uma intoxicação de propaganda institucional, as
empresas se auto-vangloriando, alardeando “responsabilidade
social”, “sustentabilidade”. As mesmas corporações que dependem
da expropriação e da violência usam o dinheiro publico, isenções
de impostos para exercer o mecenato, patrocinar e usufruir da
promoção de sua imagem nas atividades culturais, esportivas,
musicais, cinematográficas, etc.
Desinformémonos – Quais os casos mais graves, em sua avaliação?
Sevá – Considerar situações sociais mais ou menos graves
depende muito do acesso à informação sobre o que ocorre, o que é
dificultado pela própria ofensiva comentada, e depende, claro de
escalas de valor ético. Acho que são mais graves os casos que em
que as pessoas estão sendo desalojadas à força, em que os
antigos moradores, sejam indígenas, ou afro-descendentes, ou
simplesmente famílias rurais e até mesmo pequenos proprietários,
são removidos contra a vontade e vão para a diáspora, para
“reassentamentos” quase prisionais, vão para as novas favelas
das cidades.
São muito graves os casos em que o suprimento de água da
população, ou o “Riego” secularmente compartilhado entre
vizinhos ficou ou vai ficar comprometido em quantidade e
qualidade. É fatalmente o que se passa na região onde são
abertas minas de ouro, pois a mineração e a concentração do
metal usam muita água, secam os lençóis, contaminam o solo , o
subsolo e destroem ou envenenam os cursos d’água, diminuindo ou
acabando com a pesca. E são igualmente graves os casos em que
haverá fome por que se perdeu a terra de plantio, ou a mata de
colheita e caça, o rio onde se pesca.
Desinformémonos – Porque a insistência dos governos em realizar
grandes projetos hidrelétricos?
Sevá – A insistência que você pergunta existe, mas não é dos
governos, é por meio dos governos. Ou seja, é uma insistência
que tem origem na grande dependência que tem alguns setores
industriais em relação à eletricidade para uso em seus processos
produtivos, é o caso do alumínio, do cobre, do níquel, dos
metais em geral, da celulose e seus produtos, de alguns ramos da
química, como cloro-soda. Mais do que isso, é a insistência das
empresas desses setores em reduzir na sua planilha de custos, o
grande peso que tem a energia elétrica, e aí vão atrás de novas
fontes que sejam “baratas”, ou seja, nas quais os custos
fundiários, sociais, ambientais sejam reprimidos para baixo; e,
principalmente, vão atrás de condições propícias à celebração de
contratos lesivos aos países “anfitriões” desses projetos. Foi o
que ocorreu há quase trinta anos com a eletricidade de Tucuruí
no Brasil, e que está delineado agora com a eletricidade do rio
Madeira.
Desinformémonos – Trata-se, realmente, de “energia limpa”, como
se costuma dizer?
Sevá – Bem, sou professor na área de Energia há mais de vinte
anos, me formei em Engenharia Mecânica. Posso responder de modo
simples, fundamentado apenas na ciência da Termodinâmica, que é
um ramo importante da Física, que estuda o calor e o frio, as
máquinas que transformam as energias naturais em trabalho útil.
Pela Termodinâmica, a energia não se cria, não é “gerada” como
dizem os economistas, os políticos e jornalistas desinformados.
A energia é apenas transformada de um tipo em outro,
sucessivamente. O montante total se conserva e em cada
transformação uma boa parte de perde, se degrada, não podendo
ser novamente obtido o mesmo total de trabalho útil. Por tanto,
não existem energias “renováveis”.
De modo similar, existe a lei da conservação da massa e dos
fluxos de massa, das vazões: tudo que entra num sistema tem que
sair, de um modo ou de outro; se sair menos é porque se acumulou
lá dentro, se sair mais é porque havia um estoque que foi usado.
Portanto, não há como produzir nada de forma “limpa”; toda
operação produtiva produz resíduos sólidos, líquidos ou gasosos
. Mesmo uma hidrelétrica construída em cima de um solo estéril
emitirá vapor d’água por causa da insolação e da evaporação e
gases da fermentação da matéria orgânica trazida pelo rio. Se a
represa de uma hidrelétrica tiver vegetação na área alagada,
produzirá muitos gases de fermentação, do apodrecimento dessa
vegetação, inclusive o gás metano, que é um dos gases que
desequilibra o efeito-estufa natural do planeta.
Insisto na resposta: não há nada renovável, nada limpo.
E vou além: mesmo que tecnicamente fosse possível, esses
valores nunca nortearam o capitalismo. Se assim fosse, nunca
teriam existido na proporção de hoje os depósitos de lixo
urbano, o lançamento de esgoto bruto nos rios e litorais, a
poluição do ar, a contaminação do solo com resíduos perigosos.
Desinformémonos – Quais os interesses estão, geralmente,
ocultados aí?
Sevá – Transformar o interesse dos oligopólios e a luta deles
pela sua permanência e crescimento em um valor geral, em
interesses de toda a sociedade. A meta privada travestida em
objetivo público. A não explicitação do vinculo intimo entre os
“políticos” e os “ empresários”, entre a Política e a Economia;
e por aí vamos nesse período histórico que mais parece uma
“Idade Média” obscurantista: Estado fica sob o foco o tempo
todo, e as Empresas estão “fora do alvo”… No caso brasileiro, a
eletricidade, a mineração, a siderurgia, o petróleo, dentre
outros, são os setores civis onde a ditadura militar continua,
se aperfeiçoa, renova os quadros e a mentalidade dominadora,
antidemocrática.
Desinformémonos – O discurso em favor desses empreendimentos
(mineração/ energia/ transportes) que afetam terras de
populações camponesas/tradicio nais em geral opõe um “interesse
nacional” à resistência de uma “minoria que não pode prejudicar
o desenvolvimento para uma maioria” – sem falar em recorrentes
componentes xenófobos/conspirató rios que apelam a uma “suposta
ameaça estrangeira”. Esse discurso se sustenta?
Sevá – Isso tem a ver com o que eu dizia. É uma tentativa
obsessiva de dissimulação, uma espécie maligna de
auto-desconstrução: acusar os outros de fazerem aquilo que as
próprias corporações fazem. Numericamente são, sim, minorias que
moram nos territórios escolhidos para os projetos de
investimento; mas os beneficiários não são a maioria do país, e
sim as minorias mais ricas, os grandes proprietários, o sistema
financeiro. Porque o sistema não desconcentra com esses
investimentos e, sim, concentra terras, patrimônios, rendas,
tudo.
Conhecemos aqui no Brasil esse tipo de discurso maligno: é o
discurso dos dirigentes da nossa Agência Nacional de Energia
Elétrica, do nosso Ministério de Minas e Energia, da tropa de
choque da “dam industry”. Ficam difundindo essa coisa de
“investimento estruturante”, “estratégico”, falam em “segurança
energética” – expressão que vem dos EUA, com sua dependência de
petróleo importado. E daí preparam o terreno para uma
desregulamentação total,para o licenciamento acelerado e
garantido de qualquer obra, ou melhor ainda, para que se possa
qualquer coisa sem licenciamento.
O “componente xenófobo” que você menciona, acho que é a
hipocrisia ao extremo, uma manobra retórica inteligente a curto
prazo, funciona para a opinião publica de tendência direitista e
uma parte dos patriotas mesmo de esquerda. No caso da Amazônia
brasileira, os territórios já estão sendo internacionalizados
pelo capital e pelas Forças armadas e de inteligência dos países
mais fortes, que tudo monitoram. E também pelos biopiratas,
pelos compradores de terras e de florestas. Mas não se pode
negar que atuam também ONGs e missionários de Igrejas que de
fato, fazem o jogo das multinacionais.
Desinformémonos – Quais os cenários que se descortinam em
relação ao quadro?
Sevá – A situação futura será mais grave onde a população está
hoje mais desinformada, desmobilizada, manipulada por coronéis à
moda antiga, ou então, amedrontada por um passado de repressão.
Mas a ameaça também é muito grave quando os intelectuais e
políticos considerados de esquerda rezam a cartilha do capital,
repetem os mantras ideológicos do capitalismo, e usam o seu
capital político e cultural para amainar as criticas e
flexibilizar os que pensam de modo autônomo, para isolar aqueles
que simplesmente continuam resistindo à expropriação.
Aí o Brasil da década de 2010 será um anti-exemplo, o Brasil
que foi presidido durante oito anos por um ex-sindicalista,
eleito pela esquerda, embora não tenha feito um governo de
esquerda, um país que agora elegeu presidente – apesar de uma
grande soma de abstenção e voto nulo e branco – a “mãe do PAC”,
a senhora-propaganda (pois não pode ser mais uma
garota-propaganda) da “Aceleração do Crescimento”.
É incrível o realismo da linguagem, pois nem se coloca
mais o desenvolvimento como conceito-chave, e sim o crescimento.
Crescer somente não basta, como se 3 ou 4 % ao ano não fosse já
uma vitoria num mundo em crise, isso tem que ser “acelerado”. A
idéia da aceleração é exatamente o que o sistema busca
desesperadamente – contrariar a queda da taxa de lucro, obter
retornos, lucros extraordinários.
Voltamos assim à primeira resposta: a ofensiva é para tentar
desafogar o excesso de capital. Por causa da desigualdade, do
dogma anti-distribuição, da despesa crescente do próprio ato de
comandar e preservar privilégios, o capital encontra cada vez
mais impossibilidade de se realizar fechando o ciclo da
acumulação.
Entrevista com Prof. Oswaldo Sevá
Publicado em domingo, 06, fevereiro, 2011 23:21:43 por União
- Campo, Cidade e Floresta
do site Desinformemonos
Engenheiro e doutor em geografia, o professor Oswaldo Sevá tem
sido, nas universidades brasileiras, um dos principais aliados
dos movimentos sociais em suas lutas contra os grandes
projetos de “desenvolvimento”, como usinas hidrelétricas,
minas e estradas. Trata-se de empreendimentos que ele, em seus
cursos na Universidade de Campinas (Unicamp), chama de
“conflitos atuais da acumulação primitiva”.
POR SPENSY PIMENTEL
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