"Provocações” MST e laranjas
"Provocações”
“A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e
esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em
maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca,
aparado só pelo chão. A segunda provocação foi a alimentação que lhe
deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não
era disso. Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos,
por doença e falta de medicamento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou
firme. Era de boa paz. Foram provocando por toda a vida.
Não pôde ir à escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, ele
gostava de roça. Mas aí lhe tiraram a roça. Na cidade, para onde teve
que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a
todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não
podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme, firme. Queria um
emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma
submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Os que morriam eram
substituídos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não
ajudava.
Estavam provocando. Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria
voltar pra roça. Ouvira falar de uma tal de reforma agrária. Não sabia
bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era
outra provocação, era uma boa. Terra era o que não faltava. Passou
anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a
terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo.
Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo.
Pra valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi
brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer
coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação. Aí ouviu que
a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo
ano... Então protestou. Na décima milésima provocação, reagiu. E
ouviu, espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele: Violência
não!”.
LF Verissímo
MST e laranjas
Quinta-feira, 8 de Outubro de 2009
O MST é detestado por todos: da direita ruralista à esquerda chavista,
passando por tucanos, petistas, psolentos, verdes, azuis e amarelos.
Mesmo os que fingem apoiar o MST o detestam.
Isso porque há uma antipatia ancestral e inata contra o MST, esse
arquétipo de nosso inconsciente coletivo, esse cancro irremovível que
insiste em nos lembrar, mesmo nos períodos de bonança, que fomos o
último país do mundo a abolir a escravidão e continuamos sendo uma
porcaria de nação que jamais fez a reforma agrária.
O MST é o espelho que reflete o que não queremos ver.
Há duas questões, na vida nacional, que contradizem qualquer discurso
político da boca pra fora e revelam qual é, mesmo, de verdade, a
tendência ideologica de cada um de nós, brasileiros: a violência
urbana e o MST. Diante deles, aqueles que até ontem pareciam ser os
mais democráticos e politicamente esclarecidos passam a defender que
se toque fogo nas favelas, que se mate de vez esse bando de
baderneiros do campo, PORRA, CARAJO, MIERDA, MALDITOS DIREITOS
HUMANOS!
O MST nos faz atentar para o fato de que em cada um de nós há um
Esteban de A Casa dos Espíritos; há o ditador, cuja existência
atravessa os séculos, de que nos fala Gabriel García Márquez em O
Outono do Patriarca; há os traços irremovíveis de nossa
patriarcalidade latinoamericana, que indistingue sexo, raça, faixa
etária ou classe social:
O MST é o negro amarrado no tronco, que chicoteamos com prazer e volúpia.
O MST é Canudos redivivo e atomizado em pleno século XXI.
O MST é a Geni da música do Chico Buarque - boa pra apanhar, feita pra
cuspir – com a diferença de que, para frustração de nossa
maledicência, jamais se deita com o comandante do zeppelin gigante.
E, acima de tudo, O MST é um assassino de laranjas!
E ainda que as laranjas fossem transgênicas, corporativas, grilheiras,
estivessem podres, com fungos, corrimento, caspa e mau hálito, eles
têm de pagar pela chacina cítrica! Chega de impunidade! Como o João
Dória Jr., cansei!
Jornalismo pungente
Afinal, foi tudo registrado em imagens – e imagens, como sabemos, não
mentem. Estas, por sua vez, foram exibidas numa reportagem pungente do
Jornal Nacional - mais um grande momento da mídia brasileira -,
merecedora, no mínimo, do prêmio Pulitzer. Categoria: manipulação
jornalística. Fátima Bernardes fez aquela cara de dominatrix
indignada; seu marido soergueu uma das sobrancelhas por sob a mecha
branca e, além dos litros de secreção vaginal a inundar calcinhas em
pleno sofá da sala, o gesto trouxe à tona a verdade inextricável: os
“agentes“ do MST são um bando de bárbaros.
(Para quem não viu a reportagem, informo, a bem da verdade, que ela
cumpriu à risca as regras do bom jornalismo: após uns dez minutos de
imagens e depoimentos acusando o MST, Fátima leu, com cara de quem
comeu jiló com banana verde, uma nota de 10 segundos do MST. Isso se
chama, em globalês, ouvir o outro lado.)
Desde então, setores da própria esquerda cobram do MST sensatez,
inteligência, que não dirija seu exército nuclear assassino contra os
pobres pés de laranja indefesos justo agora, que os ruralistas tentam
instalar, pela 3ª vez, como se as leis fossem uma questão de tanto
bate até que fura, uma CPI contra o movimento (afinal, é preciso
investigar porque o governo “dá” R$155 milhões a “entidades ligadas ao
MST”, mesmo que ninguém nunca venha a público esclarecer como obteve
tal informação, como chegou a esse número, que entidades são essas,
nem qual o grau de sua ligação com o MST: O Incra, por exemplo, está
nessa lista como ligado ao MST?).
Ora, o MST é um movimento social nascido da miséria, da necessidade e
do desespero. Eles estão em plena luta contra uma estrutura agrária
arcaica e concentradora. Não se pode esperar sensatez de movimentos
sociais da base da pirâmide social, que lutam por um direito básico do
ser humano. Pelo contrário: é justamente a insensatez, a ousadia, a
coragem de desafiar convenções que faz do MST um dos únicos movimentos
sociais de fato transgressores na história brasileira. Pois quem só
protesta de acordo com os termos determinados pelo Poder não está
protestando de fato, mas sendo manipulado. Se os perigosos agentes
vermelhos do MST tivessem sensatez, vestiriam um terno e iriam para o
Congresso fazer conchavos, não ficariam duelando com moinhos de vento,
digo, pés de laranja.
Mas é justamente por isso que o MST incomoda a tantos: ele, ao
contrário de nós, ousa desafiar as convenções: ele é o membro rebelde
de nossa sociedade que transgride o tabu e destroi o totem. Portanto,
para restituição da ordem capitalista/ patriarcal e para aplacar nossa
inveja reprimida, ele tem de ser punido. Ele é o outro.
Quantos de nós já se perguntaram como é viver sob lonas e gravetos –
em condições piores do que nas piores favelas -, à beira das estradas,
em lugares ermos e remotos, sujeito a ataques noturnos repentinos dos
tanto que os detestam? Quantos já permaneceram num acampamento do MST
por mais do que um dia, observando o que comem (e, sobretudo, o que
deixam de comer), o que lhes falta, como são suas condições de vida?
Poucos, muito poucos, não é mesmo? Até porque nem a sobrancelha
erótica do Bonner nem o olhar-chicote da Fátima jamais se interessaram
pelo desespero das mães procurando, aos gritos, pelos filhos enquanto
o acampamento arde em fogo às 3 da madrugada, nem pelas crianças de 3,
4 anos que amanhecem coberta de hematomas dos chutes desferidos pelos
jagunços invasores, ao lado do corpo de seus pais, assassinados
covardemente pelas costas e cujo sangue avermelha o rio.
Para estes, resta, desde sempre, a mesma cova ancestral, com palmos
medidas, como a parte que lhes cabe neste latifúndio.
Para a mídia, pés de laranja valem mais do que a vida humana, quero
dizer, a vida subumana de um miserável que cometeu a ousadia suprema
de lutar para reverter sua situação.
Mas os bárbaros, claro está, são o MST.
Por isso, haja o que houver, o MST é o culpado.
Postado por Maurício Caleiro às 02:18
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