quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A DIFÍCIL ARTE DE SER MULHER


Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado
festival francês foi "Ágora", direção de Alejandro Amenabar.

A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz
coadjuvante em "O jardineiro fiel", dirigido por Fernando Meirelles.


Em "Ágora" ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se
destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia
nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a
trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de
Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre
Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria
inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro.


Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento.
Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias
suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do
Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.


Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram
Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após
assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil
anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.


O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso
se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a
opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão
sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o
caminho certo da libertação feminina.


Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o
padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem
estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se
desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de
beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes.


Onde há oferta de produtos - TV, internet, outdoor, revista, jornal,
folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em
telenovelas - o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas
etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus
talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do
mercado. É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.


Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque,
"Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem
piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem". Se tiver,
será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos
físicos que a tornem desejável.


Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e
não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar
ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: "gata", "vaca",
"avião", "melancia" etc.


Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de
enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de
ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se
à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da
medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a
caprichos estéticos).


Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um
valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha
e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa
cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a
mulher-objeto (de consumo).


Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher..
Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa
(matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o
tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome
da mulher.


No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era
permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e
enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é,
no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar.
Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.


Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual
de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens
se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes
são vencidos pela idade?


Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica
para a subjetividade.

Frei Betto *

*Escritor e assessor de movimentos sociais

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