terça-feira, 5 de maio de 2009

'Cidadão não é aquele que vive em sociedade, cidadão é aquele que transforma’. A última entrevista de Boal


A última entrevista concedida por Augusto Boal –
diretor de teatro, criador do teatro do oprimido, dramaturgo e ensaísta
brasileiro –, falecido no sábado, foi concedida à jornalista Ana Paula Souza
e publicada pela revista CartaCapital, 03-04-2009.

Eis a entrevista.

Em poucas palavras, como o senhor definiria o Teatro do Oprimido?

Defendemos que todos nós podemos fazer teatro, que todos podemos ser
personagens, de fato, de nossas próprias vidas. Por que temos de seguir
a estética determinada pela classe dominante? O Teatro do Oprimido traz
consigo a estética do oprimido. Ou seja, queremos que as pessoas
retomem suas próprias palavras, imagens e sons.

Na prática, isso significa o que?

Significa compreender que, hoje, todas as formas de expressão e
comunicação estão nas mãos dos opressores. O que a televisão oferece é
um crime estético. E ainda acham estranho que alguém saia matando 15
pessoas de uma só vez. O cérebro das pessoas está impregnado dessas
imagens. As rádios também repetem o mesmo som o tempo todo. Sem falar
no tecno, que desregula até marca-passo, e é pior que ouvir gente
quebrando tijolo em construção. O que a gente quer, no Teatro do
Oprimido, é lutar nesses três campos : palavra, imagem e som.

Nos dê um exemplo desse trabalho. Como ele é feito, que resultados
proporciona?

O Teatro do Oprimido é seguido, por exemplo, pelo MST.
Há uns 10 anos, eles fundaram um grupo e quase 30 camponeses vieram
conhecer o nosso trabalho. Passamos pra eles tudo que podíamos. Eles
não vieram para consumir uma técnica, mas para receber instrumentos que
pudessem usar em suas terras. Essa é também a ideia do Teatro do
Oprimido ponto-a-ponto, que difunde o trabalho pelo Brasil. Temos
multiplicadores do que fazemos aqui no Rio de Janeiro. Estamos em 16
Estados.

O que significa, para uma organização como o MST, ter grupos de teatro?

Significa ter o direito de tratar de certos assuntos a partir da visão
deles, expor uma visão dos acontecimentos que não é aquela dos jornais,
que coloca o MST como um bando de brutamontes. O teatro permite que o
pensamento que está por trás do movimento seja exposto, retrabalhado.

Em linhas gerais, qual a sua avaliação do teatro brasileiro hoje?

Existe um mundo de teatros no Brasil. Nunca vi um espetáculo no
Amazonas ou no Pará, então não posso avaliar. O que posso dizer é que a Lei
Rouanet assassinou
a criatividade do teatro. Ao transferir do governo, que representa o
povo, para as empresas a decisão de onde investir, a Lei substitui o
pensamento criativo pelo publicitário. Essa lei tem que acabar.

Muitos produtores dizem exatamente o oposto: se acabar a lei, acaba o
teatro.

Não é a verdade. Há muitos grupos produzindo por aí. Esse dinheiro da
lei deveria ser transferido para um fundo. A verba do fundo seria
distribuída de acordo com a avaliação de comissões constituídas pela
sociedade. A Lei não incentiva companhias como a minha, ou as de Zé Celso
(Martinez Corrêa), Antunes Filho, Aderbal (Freire Filho) ou grupos como o
Tapa.
Ela só funciona para projetos isolados, individualistas. Se eu depender
do apoio de uma empresa de macarrão, como vou produzir uma peça como
Ralé, de Gorki, que fala sobre a fome?

Qual a sua avaliação do Ministério da Cultura?

Desde que o Gilberto Gil
assumiu, temos, pela primeira vez, um Ministério da Cultura. Antes, até
houve pessoas interessantes na pasta, mas nunca um Ministério de fato.
Também acho que, pela primeira vez, deixou-se de pensar em cultura
apenas como erudição, no sentido dos grandes clássicos literários, dos
grandes pintores. O governo indicou que o Brasil deveria se apropriar
do que já existia, daquilo que o povo faz. A cultura não é apenas o que
o povo consome, é também o que o povo produz. Os pontos de cultura são
isso, eles apoiam o que já existia.

O Teatro do Oprimido também foi beneficiado, não?

Sim, e o Gil disse até
que servimos de inspiração para os pontos de cultura. Mas também
trabalhamos com outros Ministérios, como Educação e Saúde. Fizemos um
trabalho em escolas de cinco cidades, nas proximidades do Rio, e vimos
o poder de transformação que o teatro exerceu sobre os alunos.

Nos dê um exemplo dessa transformação proporcionada pelo teatro. No
caso dos hospitais psiquiátricos, há uma diminuição absurda no consumo
de medicamentos. Trabalhamos com a saúde e não com a doença mental.
Procuramos ativar a parte saudável do cérebro doente, estimulá-lo no
que tem de vivo e criativo. Com isso, o teatro é capaz de devolver ao
convívio social alguém que tinha se isolado. Nas comunidades carentes
acontece o mesmo. Os programas populares da televisão são um massacre,
impedem que as pessoas percebam o que está dentro delas. Elas apenas
consomem o que lhes é imposto. O Teatro do Oprimido procura ajudá-las a
encontrar seus próprios meios de expressão.

Que episódios, nessas andanças, mostraram ao senhor o sentido do seu
trabalho?

Vários. Me lembro de um presídio, no interior de São Paulo, que
funcionava como um leprosário. A população da cidade queria o
isolamento total daqueles presos. Resolvemos fazer uma peça de teatro,
com os presos, no meio de uma praça pública, e um morador era chamado
para entrar em cena. Isso amenizou aquela relação conflituosa e
violenta. Também de lembro de um preso, que era engraçado, e, numa
cena, fez uma menina de 10 anos rir. A menina foi elogiá-lo. Ele se
vira pra mim e diz: “É a primeira vez na minha vida que alguém me diz
que eu sirvo para a alguma coisa”.

O senhor receberá, na França, uma homenagem da Unesco. Aqui no Brasil o
senhor se considera reconhecido?

Sou reconhecido no meu trabalho, mas pela mídia, não. A imprensa só se
interessaria pelo nosso grupo se formássemos três bailarinos que fossem
dançar no Bolshoi. A mídia gosta de campeões. Campeão de Fórmula 1,
filme campeão de bilheteria, qualquer coisa que chegue na frente, que
represente a vitória. Mas o ser humano não é cavalo de corrida.

Nos anos 1950, o senhor fez parte do
Teatro de Arena, que teve grande projeção e, ao seguir o caminho do
Teatro do Oprimido, mudou o rumo da sua carreira. Foi consciente essa
escolha?

Totalmente. A escolha individualista nunca esteve no meu horizonte.
Quando era pequeno e trabalhava na padaria do meu pai, eu via aqueles
operários que passavam o dia com um pão com manteiga e uma média e
pensava: “Isso não pode continuar assim”. Eu acredito na solidariedade.
Estou com 78 anos. Isso é muito tempo. Foi outro dia que nasci e não
deu tempo de fazer nem metade do que eu queria. Mas, mesmo com todas as
dificuldades, o Teatro do Oprimido me realizou. Cidadão não é aquele
que vive em sociedade, cidadão é aquele que transforma. E acredito que
o Teatro do Oprimido tenha deixado alguma coisa para o mundo.

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